As raízes negras do judaísmo
Uma polêmica que envolve muitas vezes a palavra verdade, mas por pontos de vista que tornam a compreensão de onde ela realmente está um pouco confusa
O estudo dos livros sagrados feitos pelos judeus etíopes segue a tradição religiosa e é a base de sua cultura
No dia 21 de novembro de 1984, o exército israelense deu início a uma das mais incríveis operações de resgate de que se tem notícia. Denominada de Operação Moisés, o plano envolvia a retirada de milhares de negros judeus da Etiópia, país em que eles viviam em condições miseráveis. Em um determinado momento, 28 aviões israelenses estavam ao mesmo tempo no ar, carregados de afrodescendentes de origem judaica. Um desses jumbos chegou a entrar no livro dos recordes por carregar, de uma só vez, 1.087 passageiros, sendo que a lotação máxima era de 500. Essa comunidade, classificada de judeus etíopes, estava no país africano há mais de 2000 anos, preservando tradições daquela época e formando uma comunidade fechada, até que foram, aos poucos, oprimidos e perseguidos, obrigados a mudar suas tradições. Diziam-se descendentes da tribo da Dan, fundada por um filho do rei Salomão com a rainha de Sabá. Ao chegarem a Israel, muitos deles estavam longe das leis que regem o judaísmo, e tiveram que começar a se adaptar a uma nova vida. Apesar de terem encontrado uma estrutura política e econômica como nunca tinham recebido, esses novos habitantes do Estado israelense tiveram problemas para se acostumar às novidades. "Acho que eles se sentiram um pouco magoados, pois haviam sido perseguidos já na África e, em Israel, tiveram que passar por uma nova adaptação aos costumes judaicos" diz o rabino Reuven Segal, que serviu o exército com muitos judeus etíopes. "A nova geração já está mais adaptada, o problema maior foi com aqueles que chegaram nos anos 80. Os filhos deles já fizeram faculdade, servem exército, conhecem as leis", completa o rabino. Porém, toda essa história boa para um filme é só a ponta de uma polêmica maior, que envolve muitas vezes a palavra verdade, mas por pontos de vista que tornam a compreensão de onde ela realmente está um pouco confusa.
Essa confusão se dá desde a origem, já que alguns grupos se defi nem como hebreus israelitas, como explica a doutora em língua hebraica, literatura e cultura judaica, Jane Bichmacher de Glasman. "As palavras judeu, hebreu e israelita são empregadas indistintamente a um mesmo grupamento humano como sinônimos, embora cada uma traga em seu bojo ideias diferentes. Em síntese, pode-se dizer que hebreus refere-se primordialmente aos mais antigos ancestrais, Abraão, Isaac e Jacob". E é aí que entra a origem negra desses povos bíblicos. A doutora também lembra que o termo judeu se originou a partir de um dos nomes das doze tribos que correspondiam aos israelitas bíblicos e acabou virando o termo dominante nesse caso. "A palavra hebreu não aparece na Bíblia como gentílico, mas como adjetivo. Os livros bíblicos pré-babilônicos, isto é, anteriores ao exílio na Babilônia, não usam a palavra judeu, que só vai aparecer no período da Grande Sinagoga, em livros como Ester e Malaquias, e principalmente, na época dos domínios helênico e romano", completa Jane, afirmando que originalmente "os judeus têm sua origem na Mesopotâmia, e brancos eles não eram."
Dessa forma, na África, existem diversas comunidades judaicas. Tudo começou a se estruturar com a saída do Egito, sob o comando de Moisés, quando judeus e egípcios se uniram numa única fuga. O próprio líder teria se casado com uma negra, Tsipora. Tudo isso originou dois povos muito antigos, os Lembas e os Falashas (termo pejorativo para estrangeiro) ou Beta- Israel. Os Lembas mantêm as tradições judaicas em vilas do continente africano. Os Falashas formavam uma comunidade fechada na Etiópia que só foi localizada no século 19 e reconhecida como judaica em 1947 pelos rabinos-chefes de Israel. Ainda existe, em Uganda, a comunidade Abayuadaya, fundada em 1919 e que sofreu uma conversão maciça, em 2002. Hoje em dia a comunidade conta com cerca de 1.100 pessoas, mas tinha 3.000 quando o ditador Idi Amin Dada começou os persegui-los entre os anos de 1971 e 1979. Além dessa, na Nigéria existe a comunidade dos Ibos, que conta com cerca de 40000 pessoas. "Não existe razão alguma para que uma pessoa negra não possa ser judia e, de fato, existem milhares de judeus negros. Há pequenos grupos e congregações de autênticos judeus negros nos EUA, frequentemente descendentes de conversos, alguns descendentes de imigrantes das Índias Ocidentais", explica Jane.
HEBREU VERSUS JUDEU
A polêmica se estabelece quando surge o termo hebreu confrontado com o judeu. Para o rabino Reuben não há diferença entre uma coisa e outra. Já para quem se defi ne como hebreu sem seguir o judaísmo a coisa é um pouco diferente, como explica o teólogo e historiador Walter Passos. "Os hebreus originais foram negros e os seus descendentes também o são. Não há um momento da história de Israel que date a formação dos hebreus. O judaísmo não está escrito em nenhum livro da Bíblia e há negros que seguem essa religião, mas a maioria dos hebreus israelitas não a segue. A mídia, os livros de história, o cristianismo e o judaísmo ignoram o termo hebreu". Essa espécie de divisão é um dos pontos perigosos ao se tratar do tema. Explicando, por exemplo, a comunidade negra dos hebreus israelitas que saíram dos EUA em 1969, a fim de migrar para Israel e se estabelecer em Dimona, a doutora Jane diz que "existe uma diferença entre judeus negros e negros pseudojudeus. Estes últimos são não-judeus que pretendem passar por judeus. Em particular, há um grupo que se autodenomina 'israelitas negros' ou 'hebreus etíopes' e outras denominações semelhantes, que são negros não-judeus que têm inventado uma história na qual afirmam ter velhas raízes". Confi rmando isso, mas do lado oposto, Miryahm Ysrayl, que se denomina 'hebreia israelita' e vive hoje na Europa, conta que a relação com os judeus não é fácil para quem não segue o judaísmo. "Os judeus alegam que somos impostores, que precisamos passar por uma conversão para o judaísmo, apesar de eles não terem nem sequer um verso das escrituras que comprove que eles são os verdadeiros filhos de Israel". Mas, para Miryahm, esse tipo de situação pode provocar desentendimentos, os quais ela e a maioria dos hebreus israelitas desaprovam. "O movimento não segue um pensamento homogêneo, há diversidades em nosso meio com alguns, que após tomarem conhecimento de sua identidade, agem de forma que não aprovamos, agredindo verbalmente pessoas de pele branca pela rua", conta ela. E isso teria piorado com a publicação do livro Secret Relationship Between Blacks and Jews em que, segundo Miryahm, "o autor revela que os navios negreiros eram quase 100% de propriedade de judeus".
A CONSCIÊNCIA DO PASSADO
Essa relação é tão complexa que se liga, com um intervalo de séculos, com o movimento de migração para Dimona, idealizado por Ben Ami Ben-Israel, nascido Ben Carter, em Chicago. Foi em sua cidade natal que ele começou a reunir membros que acreditavam, como ele, serem os descendentes legítimos da tribo israelita perdida de Judá que, após a destruição do templo judaico em Jerusalém, migraram para a África, e depois foram escravizados e trazidos para a América. No final dos anos 60, esse grupo migrou para a Libéria e mais tarde se estabeleceu na cidade israelense de Dimona, que hoje conta com cerca de 3.000 hebreus negros. "O governo não sabia o que fazer com os recém-chegados que adotaram nomes hebraicos, um estilo de vestir do oeste da África e não eram nem judeus nem cristãos", conta Jane. Já para Walter, o que os moveu foi a consciência de seu passado. "Os hebreus de Dimona sabem que os verdadeiros hebreus - após a destruição dos reinos de Israel e de Judá e após a dominação romana - voltaram para o continente africano, fato relatado por diversos historiadores, como Flavio Josefo. Nesta caminhada, muitos se instalaram na África Ocidental, onde fundaram reinos importantes e mantiveram tradições hebraicas. Posteriormente, foram escravizados e sequestrados para as Américas." Essa comunidade, em especial, apesar das adversidades, conseguiu se desenvolver e hoje é internacionalmente reconhecida e desenvolvida em alguns aspectos como no cultivo de uma agricultura orgânica, que impulsionou a volta a uma alimentação vegetariana, fortemente defendida por Walter, inclusive para a população negra em geral. Apesar de todas as diferentes visões envolvendo a questão, a mensagem que prevalece é a de um convívio pacífico entre as diferentes crenças e raças. Quando se trata de Brasil, Jane logo afirma que o país é privilegiado, principalmente, quando se trata de algum traço racista nesse assunto, por nunca ter presenciado uma política abertamente segregacionista como nos EUA, por exemplo, sem deixar de afirmar que existe o preconceito. Para ela, um modelo desse convívio a ser seguido são o dos quilombos. "É muito importante lembrar que no Brasil, além de negros, os quilombos reuniam 'bruxas', hereges, ciganos e judeus. Há registros da presença permanente nas aldeias de mulatos, índios e brancos. A perseguição da época às minorias étnicas, explica brancos terem ido viver no quilombo de Palmares", encerra a doutora.
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