Para um observador desavisado, o lugar não passa de um pequeno lago frequentado por vacas leiteiras sedentas, em meio à bucólica paisagem das montanhas da região de Abruzzo, no centro da Itália. Um grupo de cientistas europeus, no entanto, enxerga a cratera acima com olhos mais dramáticos: ela teria sido formada pelo impacto de um meteorito há mais de 1.500 anos, num evento que pode ter tido uma consequência insuspeita --ajudar a difundir o cristianismo pelo Império Romano.
A cratera de Sirente, como é conhecida, foi descoberta recentemente por uma equipe liderada pelo astrobiólogo sueco Jens Ormö, do Instituto Nacional de Técnica Aeroespacial da Espanha. Trata-se da primeira cratera de meteorito identificada na Itália. Datações realizadas pela equipe de Ormö em material orgânico recolhido no local indicam que o impacto ocorreu entre os séculos 4º e 5º da Era Cristã. E teria sido suficientemente grande para ter sido percebido pela população.
O século 4º foi um momento histórico fundamental para a formação do Ocidente. Naquela época, o cristianismo deixava de ser uma religião marginal para se tornar o culto oficial do império, então fragmentado entre Ocidente e Oriente. O evento marcante dessa transição aconteceu em 312, quando, segundo a lenda, o imperador Constantino viu no céu uma cruz flamejante às vésperas de uma batalha decisiva contra seu rival, Maxentius.
A cruz trazia a inscrição latina "In hoc signo vinces" (com este sinal vencerás) e, diz a lenda, Constantino teria ficado tão impressionado com a visão que mandou pintar o símbolo cristão nos escudos de seus soldados. A batalha foi mesmo vencida e Constantino se converteu, tornando-se o primeiro imperador cristão.
"É possível que Constantino tenha testemunhado um impacto em Sirente", disse Ormö à Folha. "Um impacto desses é certamente uma visão rara e espetacular, suficiente para fazer uma pessoa contemplar seu destino."
As declarações de Ormö sobre Constantino tiveram grande repercussão na imprensa européia e, ao mesmo tempo, despertaram críticas. O local do impacto é suficientemente próximo de Roma --85 km-- para que ele pudesse ter sido visto pelo imperador.
Mas processos químicos que ocorreram no solo argiloso de Sirente podem ter alterado a datação, que flutua num intervalo inexato de pelo menos dois séculos. Era hora de alguém mais se juntar à equipe. Um arqueólogo. "Quando eu comecei a investigar a cratera, os resultados científicos produzidos por Jens Ormö ainda não estavam apoiados em evidência histórica alguma.
Minha aposta foi que registros possíveis poderiam ser encontrados fora da historiografia oficial", conta o italiano Roberto Santilli, que resolveu revirar a região atrás da tal evidência histórica. Ele a encontrou na vila de Sencinaro, no vale dos Prati del Sirente, perto da região da cratera. Ali, uma lenda sobre a construção de uma igreja no local das ruínas de um templo romano havia sido preservada por 1.500 anos.
A lenda fala de um episódio que teria ocorrido entre os séculos 4º e 5º, e que teria impulsionado a conversão ao cristianismo dos "superaequum", um grupo étnico italiano extinto no século 6º e que professava o culto ao deus romano Baco.
Segundo o relato, durante uma festa pagã, dedicada à ninfa Sicina, foi ouvido "um estrondo que atingiu a montanha e despedaçou os carvalhos gigantes". Segue a lenda: "De repente, à distância, no céu, uma estrela nova, jamais vista, maior que as outras, se aproximou mais e mais, apareceu e sumiu atrás das montanhas. A floresta secou. O Sirente tremia." Interpretando a tragédia como um sinal, os habitantes do vale teriam decidido abraçar o cristianismo.
O templo romano construído em honra a Sicina, que desmoronara no terremoto causado pela "nova estrela", daria lugar à igreja de Santa Maria della Consolazione.
Conversão
Em um artigo publicado no mês passado na revista arqueológica britânica "Antiquity", Santilli propõe que a lenda dos "superaequum" de Sencinaro tenha sido inspirada pelo impacto de Sirente. A catástrofe astronômica teria impulsionado a conversão numa época em que o cristianismo se espalhava rápido por Roma, mas rituais pagãos ainda eram praticados. O arqueólogo reconhece que há vários pontos ainda obscuros.
Primeiro, a lenda contém vários elementos míticos, dos quais é difícil separar o fato histórico. Depois, ninguém sabe ao certo se a igreja foi realmente construída sobre o templo romano. "Mas a lenda é boa demais para ser só uma coincidência, embora não possamos descartar essa hipótese", diz Ormö. Em seu artigo, Santilli compara o impacto no Abruzzo a duas quedas de meteorito recentes: a de Tunguska, na Sibéria, em 1908, e à de Sterlimak, na República russa da Bashkiria, em 1990. No caso de Tunguska, o bólido se desintegrou a 7 km de altitude, mas a explosão teve força suficiente para destruir 2.000 km2 de floresta, uma área maior que a do município de São Paulo.
A energia liberada pelo evento, que não matou ninguém nem causou danos a áreas habitadas, é estimada em 15 megatons, mil vezes maior que a da bomba de Hiroshima. Em Sterlimak, o meteorito deixou uma cratera de apenas 10 m de diâmetro --a de Sirente tem 140 m--, mas a energia da explosão foi o suficiente para que os moradores relatassem ter sentido o chão tremer. "O impacto em Sirente foi similar à explosão de uma pequena bomba atômica", disse Santilli. "Ele produziu um céu flamejante e um terremoto local que se propagou por alguns quilômetros, afetando áreas além de Sencinaro", concluiu.
Juntando um acontecimento dessa magnitude com uma nova religião que crescia no decadente Império Romano, não é difícil explicar a adoção do deus cristão pelos locais, após algum tempo. "Eu suponho que o evento em Sirente tenha chocado a consciência social, mas não gerado uma conversão imediata", afirmou Santilli. Uma das versões da lenda dá conta, inclusive, de que, após o cataclismo, um magistrado romano local mandou prender e executar o maior número possível de cristãos, para vingar sua deusa.
Misticismo
Os "superaequum" podem ser perdoados por terem ligado um fenômeno natural a uma ação divina. Muitos povos fizeram isso antes e depois deles. Eventos astronômicos observados em épocas nas quais ainda não se conhecia a verdadeira causa de uma aparição do gênero têm sido ligados a presságios e manifestações divinas de todo tipo.
No século 2º antes de Cristo, a "magna mater" (mãe maior) Cibele era cultuada por populações gregas na Frígia (atual Turquia) na forma de um meteorito negro. Várias evidências arqueológicas ligadas ao culto a Cibele, a criadora, foram encontradas nas imediações do suposto local do impacto. Da mesma forma, a Kaaba, pedra sagrada muçulmana, é descrita por alguns estudiosos como sendo um fragmento de meteorito.
Na Província de Tucumán, Argentina, um conjunto de crateras conhecido como Campo del Cielo (campo do céu, em espanhol), que data de 2000 a.C., era um local sagrado para os índios do Chaco, adoradores do Sol, que têm uma lenda para a sua formação.
A narrativa indígena fala de uma aparição no céu na forma de "uma árvore maravilhosa", que foi interpretada pelos antropólogos como sendo a descrição dos rastros de fumaça deixados pelos vários pedaços de meteorito que caíram no local. O relato fala ainda de "sons como os de cem sinos enchendo o ar, os campos e as matas com sons metálicos e melodias ressonantes diante das quais, com o esplendor da árvore, toda a natureza se curva em reverência ao Sol". Os "booms" sônicos, ondas de choque formadas pelos bólidos ao romper a barreira do som em sua queda, poderiam explicar essa "música".
A Estrela de Belém, que teria sido vista nos céus na época do nascimento de Cristo, já foi classificada mais de uma vez como um cometa ou como o efeito de uma conjunção de planetas. "Pode ter havido uma explicação astronômica, mas, enquanto explicação, ela é parcial", diz o teólogo Eduardo Rodrigues da Cruz, professor de Ciências da Religião da PUC de São Paulo.
A lenda da igreja de Santa Maria della Consolazione é considerada importante para os pesquisadores por se tratar de uma catástrofe ocorrida em tempos históricos antigos cuja memória não se perdeu e cuja descrição corresponde de uma forma impressionante aos efeitos possíveis de um impacto da magnitude do de Sirente.
Devido à imprecisão na datação do evento --a data de radiocarbono mais precisa obtida pelos pesquisadores é 412, um século depois da conversão de Constantino-- , Santilli evita fazer comentários mais assertivos sobre a visão do imperador. Mas não descarta que a cruz vista nos céus por ele e por seu Exército na batalha de 312 tenha sido, na verdade, o meteorito de Sirente.
"É interessante que, tanto na lenda de Sencinaro como na visão de Constantino, o evento tenha aparentemente ocorrido no período da tarde, quando o Sol começava a declinar. Uma epígrafe encontrada perto do local do impacto pode levar a Constantino. Mas hoje é impossível dizer se a cruz flamejante que o imperador viu bate com o evento de Sirente, embora a proximidade geográfica e temporal faça disso uma possibilidade interessante", afirmou o italiano.
Segundo Santilli, há menos de meio século os cientistas começaram a entender o que acontece quando um objeto celeste atinge a Terra. As consequências ambientais e sociais desses impactos dependeriam de quem os observa, e quando. A descoberta da cratera de Sirente, afirma o arqueólogo, oferece uma possibilidade rara de conexão direta entre observações de campo e uma lenda preservada durante mais de 15 séculos.
"A confusão sobre a escolha da religião nesse período pode ter sido afetada por um fenômeno natural espetacular", afirma Santilli.
Para Cruz, no entanto, a associação entre o impacto e a conversão de Constantino é duvidosa. "Minha impressão é que, se houvesse tido algo assim, teríamos algum registro escrito", disse o teólogo à Folha.
Segundo o professor da PUC, as pessoas se esquecem, quando falam nos "pagãos" da Itália, que a região fazia parte do Império Romano, centro da civilização ocidental. "É difícil que algo significativo não tivesse sido registrado. As pessoas sabiam do que se tratava."